quinta-feira, 29 de agosto de 2013

A solidariedade e a união em um abrigo de muitas realidades, no bairro Canudos

A solidariedade e a união em um abrigo de muitas realidades, no bairro Canudos

Acompanhe as histórias e a rotina das pessoas que ficaram desabrigadas por caus da enchente e utilizam o abrigo em Novo Hamburgo


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Misael Lima

Novo Hamburgo  - O repórter Misael Lima, passa a noite no abrigo organizado pela prefeitura de Novo Hamburgo, para os moradores que foram afetados pela enchente, no Instituto Estadual Seno Frederico Ludwig, o Ciep de Canudos . Acompanhe as histórias e a rotina de quem foi forçado a deixar o lar, perdeu tudo e encontra forças para fazer um novo começo.
19h50 - Chegada e galinhada

O barulho na chegada era de enlouquecer. Enquanto alguns desalojados ainda tentavam entrar, os voluntários e servidores da Secretaria de Desenvolvimento Social (SDS) chamavam pelo microfone a população para a hora da janta. Ao entrar no ginásio do Instituto Estadual Seno Frederico Ludwig, o Ciep de Canudos, a impressão é de colocar os pés em um mercado público. O cheiro da galinhada é convidativo, e talvez seja um dos poucos consolos para quem teve a casa e os poucos pertences levados pela cheia do rio. A fila que se forma em alguns segundos é imensa e a refeição é completa: galinhada, lentilha, sanduíche, brócolis e salada, com um copo de suco.
Quem me guia pelo meio dos colchões e das pessoas que aguardam a sua vez é a assistente social da Prefeitura Graziela Gonçalves, 31. Ela, que desde segunda-feira parou apenas seis horas para descansar e, o resto do tempo, passou organizando o abrigo, as doações, os voluntários e as vítimas da enchente. “Estamos atendendo, nesta noite, em torno de 500 pessoas, a maioria delas crianças que, muitas vezes, nem sabem o que está acontecendo. Recebemos muita comida, muitas roupas, praticamente não conseguimos ter um período de folga sem receber algum tipo de doação”, relata Graziela, mostrando a cozinha e os depósitos de doações espalhados pelas salas do ginásio.
“Conseguimos acomodar 25 famílias em sete salas de aula, mais um bom número no mezanino e outra parte na quadra de esportes do ginásio. Ao todo, são em torno de 60 famílias sendo abrigadas por aqui. Acredito que, por muitas pessoas terem se mantido em casa nesses três primeiros dias, mais gente deve chegar até o final da noite. Elas vão estar cansadas de esperar a água baixar e vão procurar abrigo”, comenta.

20h30 – Os “Alagados”
Após a breve introdução aos voluntários e servidores que atuam no abrigo, fui conversar com as famílias que faziam suas refeições, sentados nos colchões espalhados pela quadra de esportes. Segundo a SDS, a qualidade dos colchões e dos edredons doados para as famílias vítimas da enchente, ou os “alagados”, surpreenderam a equipe. Não era difícil entender porque. Cobertores e edredons de qualidade e, principalmente, limpos para enfrentar o ar frio da noite que entrava pelas portas e pelo teto do local.

Em um dos cantos, estava a dona de casa Jaqueline da Luz, 28. Com ela, cinco filhos. A maioria, meninas com faixa etária enre 2 e 10 anos. Para ela, não houve tempo para mais nada. “Minha filha saiu para escola de manhã e a água estava perto de casa. De tarde, já estava dentro. Tive tempo de pegar meus filhos e sair de lá. Não consegui salvar nada”, relata. Pergunto para ela o que as crianças estão pensando dessa situação, se elas sentem a diferença. “Só a menor. Ela vê que não está em casa. Ela estranha. Só ela parece saber que tem alguma coisa errada”, afirma.
E quando a situação aperta, o laço criado entre vizinhos também se mostra forte na comunidade. É o caso de Taís Aguiar Andrade e Janete da Silva. “Minha casa é mais alta da nossa rua. Passei anos economizando para fazer ela mais alta. E mesmo assim, a água já está na porta de casa”, conta. Taís, que mora a menos de um ano no local, teve sorte: conseguiu levar seus eletrodomésticos para a casa de Janete antes da chuva. Mas perdeu os móveis e o que não conseguiu carregar. “Meu marido ficou lá para cuidar das coisas, caso a água entre ou caso alguém queira roubar. Minha casa eu nem tenho mais esperança. A água chegou ao teto.” Sem ter outra opção, resta a Taís e Janete esperar a água baixar.

21h10 – “Ficamos mais humanos, mais solidários”
“Estamos enfrentando a maior enchente dos últimos anos, provavelmente a maior em 65 anos”, afirma o secretário de Desenvolvimento Social, Hélio Pacheco. Das dez enchentes que enfrentou como titular da pasta desde o governo de Tarcísio Zimmermann, essa também foi a maior de todas. “E olha que em 2009 foram cinco enchentes. 2008 tivemos uma muito forte também, mas essa superou. Calculamos que 15 mil pessoas foram atingidas em Novo Hamburgo.”
Para Pacheco, a preocupação vai além da solução imediata do abrigo e da alimentação. “Se a vida dessas pessoas já é difícil com as condições de moradia, imagina eles voltando e encontrando a casa 100% coberta de água e tudo que foi adquirido por eles, durante anos, perdido. É um baque muito grande na situação financeira das famílias e é um baque muito grande para o Município. Nós já temos que pensar em como, pelo menos, reerguê-los ao patamar que tinham antes da enchente”, diz. A volta, segundo ele, é a parte que mais dói. “Sabemos que na hora de devolvê-los para casa, vai ser o momento de decepção maior. Seja pelos bens materiais que foram perdidos ou pelas lembranças que foram destruídas. Sabemos de pelo menos dez casos de cachorros que morreram dentro de casa. As pessoas não queriam levar eles ao canil, deixaram em cima de uma mesa, por exemplo, e o animal não aguentou e pulou na água, para acabar se afogando. Eles vão voltar, vão ver uma fotografia ou uma lembrança, e pode ser que não aguentem. Nós temos que dar um empurrão para que eles deem a volta por cima, e só podemos fazer isso com políticas voltadas para assistência social.”
Mas a mobilização da população fez a diferença para Pacheco. Tão logo a situação de cheia foi divulgada, roupas e doações de comida de diversas cidades da região começaram a chegar a Novo Hamburgo. “Fiquei feliz na tarde de ontem pois havia um engarrafamento solidário. Muitos carros descarregando doações de comida, cobertores e colchões. Parece que essa cheia tocou fundo nos hamburguenses. Ficamos mais solidários.”
22 horas – A noite avança, começam os preparativos para a madrugada



O frio já é muito mais forte do que nas primeiras horas da noite. É difícil não tiritar, mesmo bem protegido do frio. Para as vítimas da enchente, no entanto, a situação parece bem mais acolhedora. Cobertor é o que não falta. E as pessoas se ajeitam como pode. Chama a atenção o pensamento coletivo voltado para a organização do espaço. Antes de deitar, todos varrem seus locais e deixam tudo o mais limpo possível para a manhã seguinte. Por mais que a conversa continue, alguns se rendem ao sono ou, ao menos, tentam dormir. Mesmo com todo o barulho e até as brincadeiras que muitos fazem no abrigo, quando começa a surgir o silêncio, dá para ver no rosto de cada um a preocupação com o que ficou para trás. Não uma preocupação, mais para um cansaço, um enfado. Como as papeleiras Maria Lonites e Emília Leci. Desde segunda-feira no abrigo, elas contam que tentaram ficar até a última hora nas suas casas e, por muito pouco, não perderam a vida. “Já tivemos outras enchentes mas nunca precisamos sair de casa. Achamos que ia ser igual dessa vez. Quando vimos, a água estava batendo no peito. Peguei minhas crianças e comecei a sair com elas. Nesse momento, achei que nós íamos nos afogar. Conseguimos sair e a Defesa Civil nos encontrou no meio do caminho e nos trouxe para cá”, conta Emília. Para Maria, a perda recente pode ser notada no olhar marejado. Enquanto ela fala sobre os dez anos que trabalhou catando papelão para mobiliar a casa, é díficil não engolir em seco e se colocar no mesmo lugar. Cada história, por mais parecida que seja, tem um detalhe muito pessoal de cada pessoa que parece torná-la mais real para o ouvinte.


E, mesmo entre as vítimas, tem gente que deixa de lado os problemas pelo bem maior. O pedreiro Orestino Feliciano da Silva é um deles. Ele conta que sempre gostou de ajudar e preferiu se voluntariar no abrigo, para manter a cabeça ocupada. “Vim de uma cidade pequena e sempre ajudei como pude lá. Moro aqui a dois anos e, provavelmente, perdi tudo na cheia. Mas isso não quer dizer que eu tenha que ficar parado”, afirma, rindo de si mesmo.
23 horas – Dificuldades e voluntários
O secretário Hélio Pacheco, relata que mesmo com muita disposição do voluntariado, é só a partir do terceiro dia que as equipes começam a se entrosar e, principalmente, separar as vítimas das pessoas que querem apenas se aproveitar da situação. “Como temos muita mudança de turno, às vezes alguém tenta sair ganhando com a situação. Temos fichas para que as pessoas jantem apenas uma vez, mas a janta é sempre reforçada o suficiente para que não tenha necessiadade de uma repetição. Também nas doações temos que abrir o olho para evitar que alguém ganhe roupas que não servem para ela. São pessoas em uma situação de muita vulnerabilidade, precisamos estar atentos”, relata.
Nas trocas de turno, os voluntários definem suas tarefas e se reúnem para discutir os pontos que merecem maior cuidado e atenção para evitar qualquer tipo de problema durante a noite. Por volta das 23 horas, o silêncio se intensifica. A maioria das pessoas já está deitada. Luz, somente nas salas onde as famílias estão abrigadas. Alguns assistem a televisão, outros ainda ouvem música no aparelho de som que conseguiram salvar da água.
Pacheco me convida para acompanhá-lo na volta de boa noite aos abrigados. Conhece alguns das dez enchentes que trabalhou e os cumprimenta. Mesmo que não saiba o nome, uma lembrança de alguma cheia ou uma característica física é o suficiente para que a pessoa esboce um sorriso. “Essa senhora aqui, ó (aponta ele), está conosco desde a primeira enchente. E por mais que ela coma, parece que nunca engorda”, conta enquanto a senhora come um bolo e sorri para ele.
Algumas vezes, uma situação mais delicada exige jogo de cintura. “Tem pessoas com vidas muito complicadas, ou que tem passado com o crime. Temos que entender que a falta de opções na vida levou essa pessoa ao caminho errado e, aqui, temos a chance de, quem sabe, conquistar ela e aos poucos tentar ajudá-la a mudar de vida”, discursa para os voluntários.
Graziela relata que, só na noite de ontem, 60 voluntários trabalhavam mas, ao todo, são mais de 150. Entre eles, pessoas que fazem a entrega de comida em barcos, nas casas daqueles que não quiseram deixar seus pertences e ir aos abrigos.
1h30 -
Muito frio. A altura do ginásio diminui ainda mais a sensação térmica. Os voluntários são chamados a uma sala por abrigados que relatam um cheiro estranho vindo de um idoso de idade indefinida. Após constatarem o problema, os voluntários convencem o idoso a segui-los e vestir uma fralda geriátrica. Em seguida, retiram o colchão e limpam o local. Apenas alguns colegas de sala do idoso acordam.
3 horas -
Há voluntários do turno da noite em todos os setores. Da cozinha, preparando a alimentação da manhã, ou mesmo no setor de doação de roupas, dobrando peças e separando-as nas devidas pilhas. Entre os abrigados, o único barulho continuam sendo os roncos.
5h15 – Na cozinha
A madrugada gelada não facilitou o sono dos abrigados. Não era incomum ouvir o sono perturbado daqueles que tentavam deixar para trás o sentimento de perda e dor dos dois últimos dias. Na cozinha, os voluntários e funcionários da Prefeitura se reuniam ao redor do fogão para se esquentar, tomar um café preto, amargo e bem quente. Também, para trocar histórias. “Nós estávamos com cinco famílias, devidamente atendidas e tentando se esquentar na segunda-feira. O ginásio estava muito gelado e chovia forte do lado de fora. Sentamos com um cobertor e nessa hora, a porta se abriu. Em menos de cinco minutos, passamos de 25 pessoas para 150. Elas vinham encharcadas da rua. Tremendo. Teve uma menininha que veio até mim, segurando firme na mão uma sacolinha plástica. Ela estendeu para mim. Eu disse para ela ficar calma e se esquentar que eu ia cuidar da sacola. Ela foi lentamente se cobrindo. Dentro da sacola, as fraldas descartáveis dela”, conta a pedagoga Ana Paula Seger.
Para o assistente social Rodrigo Van Damme, a experiência de trabalhar no cuidado das pessoas abrigadas foi o choque de ter que encarar a realidade, bem longe da teoria das faculdades. “A gente não vê mais os números da tragédia. A gente vê os rostos, aqueles números tem um nome, tem uma história. Chegamos nas casas tentando convencer as pessoas a deixarem seus pertences e virem para os abrigos. Mas muita gente não consegue deixar tudo para trás. Estávamos na casa de um idoso, onde a água passava pelas canelas e ele estava assistindo televisão. Convencemos ele a nos acompanhar a muito custo. Quando ele chegou no abrigo, estava completamente travado de frio. Depois de algum tempo no chuveiro é que ele começou a voltar ao normal”, conta.
A voluntária Vanessa Kayser conta que outra enchente foi marcante na vida de sua família. "Três pessoas morreram na cheia de 1965. Uma delas foi meu avô. Na época, não havia os diques que seguram a água do rio e as enchentes eram violentas. Meu pai disse que conseguiu se salvar porque seguiu um conselho: correu."
Entre os casos, a história de um adolescente de apenas 14 anos, que não só salvou todos os eletrodomésticos da família sozinho, como ajudou os vizinhos com seus pertences e ainda convenceu-os a partir para o abrigo. “Muita gente preferiu ainda ficar perto de suas casas. Um grupo de pessoas está acampado na Avenida dos Municípios. Eles chegaram a carnear um porco que estava nas águas do rio, perdido. Tem um grupo de amigos que está morando no telhado de uma das casas. De lá, eles vigiam as outras casas da rua para evitar os roubos e furtos”, relata Rodrigo.
7 horas - Amanhece
O sol se levanta devagar. As pessoas aos poucos vão saindo para o trabalho ou para seus compromissos. Nas palavras de uma abrigada “é melhor ocupar a cabeça com trabalho, do que ficar remoendo o que nos espera em casa”. O frio cortante da manhã de quinta-feira trás a esperança da diminuição do nível das águas. Nesses poucos momentos de alegria, os “alagados” experimentam alguns momentos de segurança e tranquilidade, antes de se depararem com a dura realidade que os aguarda, logo no final da rua.

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